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Comarca da Capital I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher - Grupo Reflexivo para Homens

GRUPO REFLEXIVO COM AUTORES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

RESUMO

O presente trabalho refere-se a um relato de experiência sobre a atuação de assistentes sociais no judiciário, em grupos reflexivos com autores de violência doméstica contra a mulher, pautados na Lei Maria da Penha e na compreensão de que a ideologia da sociedade patriarcal legitima as desigualdades de gênero e determina a reprodução do fenômeno da violência de gênero.
Palavras chaves: Lei Maria da Penha; Violência doméstica e Gênero.

ABSTRACT

This thesis refers to an experience report about the performance of social workers in the judiciary in discussion groups with perpetrators of domestic violence against women guided by the Maria da Penha Law and the understanding that the ideology of patriarchal society legitimizes gender inequalities and determines the reproduction of the phenomenon of gender violence.

Keywords: Maria da Penha Law, Domestic Violence and Gender.

Introdução

Pesquisa realizada em 2003, no Rio de Janeiro com 749 homens entre 15 e 60 anos revelou que 25,4% afirmaram ter usado violência física, pelo menos uma vez e cerca de 40% fizeram uso de violência psicológica, ao menos uma vez contra sua parceira íntima. No total, 51,4% já tinham cometido algum tipo de violência - física, psicológica ou sexual - contra sua parceira. (BARKER; ACOSTA, 2003 apud LIMA, 2008).

Os juizados especiais foram inaugurados em 2007 em cumprimento a Lei Maria da Penha (lei 11.340/06) que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Estas instituições, previstas pela legislação tem competência cível e criminal para o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei nº 11.340/06, art. 14).

Como previsto na legislação, os juizados contam com uma equipe técnica de assistentes sociais e psicólogos que tem competência de fornecer subsídios ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes. (Lei nº 11340/06, art. 30)

O artigo 35 da Lei nº 11.340/06 prevê que a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite de suas competências, centros de educação e de reabilitação para os agressores; e o artigo 45 estabelece que nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

Nesse contexto, em 2007, teve início o grupo reflexivo com autores de violência doméstica, inicialmente, somente por dois psicólogos. No decorrer dos anos, a equipe ampliou-se através de convênios do Tribunal de Justiça com a Prefeitura, o governo estadual e o Ministério da Justiça, e passaram a integrar assistentes sociais e outros psicólogos, o que fortaleceu tanto qualitativamente esse trabalho, como possibilitou a expansão da capacidade de atendimentos individuais e grupos reflexivos junto aos autores de violência doméstica.

Desta forma, a equipe multidisciplinar realiza um trabalho amplo de atendimento as mulheres e homens que são partes dos processos neste âmbito. Entretanto, o presente trabalho faz um recorte com o intuito de relatar a experiência de atendimentos individuais e em grupo aos acusados nesses processos judiciais de cometerem violência doméstica. Tal enfoque coloca-se como relevante, considerando que pouco se tem de trabalhos escritos por assistentes sociais sobre experiências de trabalho com agressores de violência doméstica.

A autora Bárbara Soares alerta para o fato de que:

Só muito recentemente e ainda assim apenas em alguns países, a violência doméstica passou a ser reconhecida e considerada como um problema social que merece ser enfrentado e combatido. A visão tradicional da família como santuário, "célula-mãe da sociedade", "base do edifício social", acabou gerando uma barreira de proteção contra um fato um tanto desconcertante e, para muitos, ainda hoje inaceitável: o terror e a violência provocados por estranhos, bandidos, assaltantes, assassinos, quase sempre pobres, negros ou mulatos, segundo nosso imaginário amesquinhado por preconceitos e dominado pelo medo, pode não ser diferente daquele experimentado, sobretudo, por mulheres e crianças, dentro de suas próprias casas. Mais do que isso: é exatamente dentro de suas próprias casas que mulheres e crianças correm maior risco de serem agredidas, estupradas, ameaçadas e mortas. (Soares, 1999, pág. 23)

Objetivos do trabalho junto aos autores de violência doméstica:

Objetivo geral

Enfrentar as expressões da violência doméstica e familiar contra a mulher através do atendimento aos autores em situação de violência.

Objetivos específicos

- Estimular o rompimento do ciclo de violência; bem como trabalhar a responsabilização frente a violência perpetrada;
- Propor a discussão acerca da violência doméstica em todas as suas expressões e a reflexão para a resolução de conflitos sem uso de violência;
- Contribuir para a equidade de gênero;
- Prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher;
- Desenvolver campanhas educativas voltadas para os (as) autores (as);
- Refletir sobre a Lei Maria da Penha e seus desdobramentos;
- Enfocar a violência contra a mulher como violação de direitos humanos;
- Atender aos (as) autores (as) encaminhados ao juizado.

Metodologia

O atendimento aos autores em situação de violência doméstica, pela Equipe Técnica ocorre através de entrevista preliminar para inserção nos grupos; entrevista de acompanhamento e grupos reflexivos.

Os encaminhamentos para inserção nos grupos reflexivos são por determinação judicial e diferentes formas: suspensão condicional do processo; como condição da suspensão da pena; transação penal; e como condição de soltura durante o andamento do processo judicial.

Os grupos reflexivos são coordenados por duplas de profissionais (assistentes sociais ou psicólogos) e acontecem através de oito encontros semanais ou quinzenais com duração de duas horas cada. Na oitava reunião, os participantes são convocados a retornar após noventa dias para avaliação.

Conforme a sistematização do trabalho de grupos reflexivos elaborado pela Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher - CEJEM/TJ, os princípios norteadores desses grupos são: Responsabilização (aspecto legal, cultural e social); Igualdade e respeito a diversidade ( discussão sobre gênero ); Equidade (observância à garantia dos direitos universais) e Promoção e fortalecimento da cidadania.

Os profissionais facilitadores dos grupos, que compõem a equipe técnica, possuem autonomia na escolha da metodologia a ser utilizada. A proposta deste trabalho é baseada na literatura de Paulo Freire, que associa temas e conceitos com a experiência cotidiana do universo da pessoa, favorecendo diálogos através de perguntas e dinâmicas, possibilitando a reflexão sobre identidade de gênero e o cotidiano dos autores em situação de violência. As perguntas são para Freire, um instrumento de diálogo e geradora de novas questões e reflexões.

O grupo reflexivo de gênero para autores em situação de violência doméstica permite que o usuário seja trabalhado no grupo e que o grupo seja trabalhado pelo Facilitador, gerando assim uma ação reflexiva. O facilitador possui a função de propor atividades geradoras de reflexões. Assim cada reunião cumpre um objetivo específico de acordo com o encadeamento de temas propostos.

Os temas trabalhados no grupo são previamente planejados pela equipe, visando principalmente o rompimento e a prevenção da violência doméstica. A primeira reunião visa informar sobre o funcionamento do grupo (horário; dia; etc.); estimular a adesão espontânea dos participantes; estabelecer os norteadores éticos e de convivência (tais como: sigilo, pontualidade, respeito com a história do outro e o compromisso com a não violência).

Depois, na segunda reunião, são discutidos os principais aspectos da Lei Maria da Penha; tais como, o conceito de violência doméstica contra Mulher (Art. 5º); as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher (Art. 7º); renúncia admitida somente perante o Juiz (Art. 16); medidas protetivas de urgência (Art. 22); comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação - Grupo Reflexivo (Art. 45).

A terceira reunião tem por finalidade fazer um resgate da história de vida de cada participante desde a infância até a idade atual; pontuar como a violência foi sendo inserida na vida de cada um; levantar reflexões sobre a responsabilização dos fatos vivenciados e apontar formas de enfrentamento dos conflitos, sem a utilização da violência.

Na quarta reunião trata-se das questões de gênero, propondo uma reflexão sobre esse conceito, em que se discute a forma como o masculino e o feminino são construídos socialmente, buscando o questionamento da desigualdade entre os gêneros. Busca-se refletir que características biológicas, que diferenciam os homens das mulheres, não podem ser usadas como justificativas para promover o machismo. Refletir com o grupo os papéis cristalizados e rígidos propagados pela nossa cultura, reproduzidos pela mídia, Igreja, escola, família e a comunidade que podem gerar conflitos em várias esferas, inclusive doméstica. Nesta reunião, usamos o aporte teórico de Saffioti (1995), que ressalta que " o conceito de gênero se situa na esfera social, diferente do conceito de sexo, posicionado no plano biológico. Segundo a autora, o conceito de gênero carrega "uma dose apreciável de ideologia - a patriarcal. Forjada especialmente para dar cobertura a uma estrutura de poder que situa as mulheres muito abaixo dos homens em todas as áreas da convivência humana".

Na quinta reunião trata-se diretamente da questão da violência e formas de combatê-la. Busca-se identificar situações onde se sente raiva e refletir sobre o que fazer para não perder o controle.

E, na sexta reunião a proposta é tratar da paternidade e do cuidado com os filhos, onde se discute alternativas não violentas para lidar com situações de conflito entre pais e filhos, além da valorização do cuidado paterno.

Durante a sétima reunião trabalha-se o ciclo da violência, de forma lúdica e explicativa; apresentam-se as características de cada fase; levanta-se como cada um dos participantes vivenciou esse ciclo; fomentando formas de superação e rompimento da violência doméstica.

Assim, na oitava reunião, os participantes do grupo são motivados para que revejam e avaliem os seus objetivos; reflitam sobre as metas e sobre o futuro, resgatando sonhos e desejos; além de estimular a adesão ao pacto pela não violência. E também é, quando se avalia o trabalho realizado e a contribuição da participação no Grupo de Gênero para a qualidade dos relacionamentos e consequentemente para a qualidade de vida de seus membros.

Dados quantitativos:

Desde o início desse trabalho em 2007 até março de 2016, foram realizados 123 grupos reflexivos, tendo cada grupo o mínimo de 8 reuniões. Nesse período, 1476 pessoas... desse universo 1248 concluíram a participação nos oito encontros. Os grupos informativos não foram mais realizados desde 2012. Atualmente, há uma fila de espera com 43 (I JVDFM) e 11 (V JVDFM) autores, que já passaram pela entrevista individual, para inserção nos grupos e 72 encontram-se agendados para entrevista e posterior inclusão no grupo.

Outra modalidade de trabalho realizado é o grupo informativo que consiste em um único encontro. Até setembro de 2012, foram desenvolvidos 21 grupos informativos com 197 autores de violência.

Atualmente, há uma fila de espera com 177 autores, que já passaram pela entrevista individual, para inserção nos grupos reflexivos e 81 encontram-se agendados para a entrevista e posterior inclusão no grupo. Os encaminhamentos, por determinação judicial, com o intuito de inserção nos grupos são frequentes, aumentando diariamente esse quantitativo para atendimento da equipe interdisciplinar.

Recentemente, foi iniciado o processo de avaliação dos grupos reflexivos com a aplicação de questionários aos participantes no oitavo encontro e no retorno após noventa dias. Esse instrumento de avaliação faz parte da sistematização do trabalho dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, proposto pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro - CEJEM e poderá contribuir para uma avaliação qualitativa do grupo.

Considerações finais

O trabalho com autores de violência doméstica coloca-se como uma proposta inovadora e desafiadora realizada no judiciário. Pensamos que essa iniciativa contribui para que o espaço da Justiça tenha ações de caráter preventivo, atuando para além da punição. Entretanto, traz importantes desafios, como de promover espaços de reflexão no âmbito da Justiça com réus em processos criminais.

Sabe-se que, como reflexo de construções históricas e sociais do que se refere ao feminino e ao masculino, os homens não são educados a refletir sobre a sua vida, suas emoções e atitudes. Desta forma, a maioria dos agressores que participam desse grupo, pela primeira vez, são inseridos em um processo de reflexão e conhecimento sobre suas histórias e possibilidades de se pensar em transformação. No entanto, temos bastante clareza dos limites de nossa intervenção, considerando o curto período do trabalho em face do desafio de se questionar as desigualdades das relações de gênero tão enraizadas na sociedade.

Contudo, percebemos nas falas dos homens que finalizam os grupos, que a troca de experiências entre os participantes e as reflexões conduzidas pelos profissionais, na perspectiva do enfrentamento às desigualdades de gênero, contribuem para um processo de questionamento crítico da sociedade patriarcal. Consideramos que essa intervenção deve ter como base o entendimento do que é enfatizado por Suely Almeida (2007) de que a ideologia patriarcal legitima a violência de gênero que "se passa num quadro de disputa pelo poder, o que significa que não é dirigida a seres, em princípio, submissos, mas revela que o uso da força é necessário para manter a dominação".

Referência Bibliográfica

ALMEIDA, A C C; Cosendey, S M; Fernandes, E C; Lacerda, L M S D; Pacheco, APA. Trabalhando em grupo com homens em situação de violência doméstica. In: Artigo publicado nos anais da XIX Conferência Mundial de Serviço Social. Salvador/BA, Agosto 2008.
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Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, Lei Maria da Penha.
FREIRE, Paulo. Aprendendo com a própria história. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
LIMA, Daniel Costa. Homens autores de violência doméstica familiar contra a mulher: Desafios e possibilidades. UFSC, Florianópolis, 2008.
PANDJIARJIAN, Valéria. Os estereótipos de gênero nos processos judiciais e a violência contra a mulher na legislação. Disponível em: http://www.ipas.org.br/arquivos/valeria/painel.doc. Acesso em janeiro/2008.
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SOARES, Bárbara M. Mulheres invisíveis. Violência Conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.