O estabelecimento de regras e procedimentos para o reconhecimento pessoal e sua aplicação pelo Poder Judiciário é um dos produtos que o grupo de trabalho instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vai desenvolver para evitar a prisão de inocentes e aumentar a segurança para a correta identificação dos suspeitos. Desde outubro do ano passado, 78 pessoas foram inocentadas ou tiveram seus processos suspensos ou a prisão relaxada após revisão dos métodos de reconhecimento aplicados. Os dados são do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que já verificou irregularidades no reconhecimento pessoal, por fotografia e presencial, em mais de 50 decisões.
A primeira reunião do grupo de trabalho sobre reconhecimento pessoal ocorreu na segunda-feira (4/10). Coordenado pelo ministro do STJ Rogerio Schietti, o colegiado tem 180 dias para elaborar produtos, rotinas, normas, treinamentos, publicações e outros instrumentos para aumentar o grau de segurança dos protocolos de identificação de suspeitos. “É fundamental que sejam aprimoradas as perícias e as investigações para se alcançar um standard probatório mais seguro, que minimize os riscos de erro judiciário. Temos de criar condições para que esses erros sejam evitados”, disse.
Os componentes do GT avaliam que não há como saber de maneira inequívoca o número de pessoas presas por erros do procedimento ou condenadas exclusivamente com base no chamado reconhecimento formal. Porém, pesquisas nacionais e estrangeiras, assim como produções científicas, já revelaram o elevado grau de falibilidade do cérebro humano diante de emoções e de distorções culturais. Levantamento feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) em âmbito nacional concluiu que houve decretação de prisão preventiva em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado nas delegacias de polícia. A pesquisa também revelou que as pessoas apontadas em 83% dos casos de erros eram negras.
A coordenadora executiva da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões UMF/CNJ, Isabel Penido, ressaltou a importância de alinhar a produção do GT à perspectiva do sistema interamericano e o dever de devida diligência nas investigações.
Protocolo para identificação
O juiz auxiliar da Presidência do CNJ e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, apresentou uma proposta de plano de trabalho para o grupo, que conta com representantes do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícias Civil e Militar, advocacia, academia e sociedade civil.
O GT foi dividido em cinco comitês técnicos que, além da minuta de resolução com a regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal e sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário, terão de produzir: um manual de diagnóstico dos elementos que facilitam a condenação de inocentes e uma orientação técnica no sentido de solucionar essa questão; uma proposta de protocolo e documento mapeando boas práticas para o reconhecimento em sede policial; uma minuta de projeto de lei para aperfeiçoamento do Código de Processo Penal (CPP) e ações de capacitação na temática.
Conheça o plano de trabalho do GT do CNJ sobre reconhecimento pessoal
Também está prevista a realização de uma audiência pública e um workshop com especialistas, além da elaboração de pesquisa e publicação com produtos resultantes do trabalho do grupo. “O grupo de trabalho vai se debruçar sobre um tema bastante sensível e teremos, portanto, grande responsabilidade pelas diretrizes que vão se estabelecer a partir dessas reuniões”, disse Lanfredi.
O juiz auxiliar da Presidência do CNJ Anderson de Paiva Gabriel e o Professor Cleifson Dias estão na relatoria do comitê encarregado de organizar a publicação técnica e as ações de capacitação e formação na temática.
Racismo estrutural
O advogado e coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional e de Litígio Estratégico da Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, ressaltou que o momento é histórico. “Os reconhecimentos equivocados não se resumem a um erro, mas são consequência de processos decisórios e de uma legislação em descompasso com as evidências científicas produzidas há mais de 50 anos. Que possamos, a partir deste trabalho, assumir o compromisso da nossa geração no enfrentamento ao racismo estrutural, definitivamente derrotando a atual prática com o senso de urgência que o tema exige”, afirmou.
O advogado criminal Luciano Góes, um dos representantes da advocacia negra presentes na reunião, disse esperar que, no âmbito do GT, seja possível dar respaldo às demandas históricas dos movimentos negros brasileiros. “Sobretudo no âmbito dos erros sistêmicos do nosso Sistema de Justiça, que terminam em sentenças judiciais que refletem as manifestações diretas e indiretas do racismo antinegro brasileiro e que constituem, sem dúvida alguma, um dos fatores do encarceramento em massa do nosso povo e no nosso país”, disse.
Erros judiciais
A relatoria geral dos trabalhos ficará a cargo da representante do Instituto de Cultura e Consciência Negra Nelson Mandela Thais Pinhata e do professor de direito penal e criminologia da Faculdade de Direito da USP Maurício Dieter, um dos subscritores do ofício endereçado ao CNJ que provocou a criação do GT, juntamente com o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Hugo Leonardo, e a diretora do Innocence Project Brasil, Dora Cavalcanti.
A Innocence Project atua na defesa de réus vulneráveis para reverter condenações injustas e verificou que o reconhecimento pessoal equivocado tem sido uma das principais causas de erro judiciário a levar inocentes indevidamente ao cárcere não apenas no Brasil. Nos EUA, pesquisa feita pela entidade revelou que os reconhecimentos pessoais equivocados são a causa dos erros judiciais em cerca de 70% dos casos em que houve a revisão das condenações após a realização de exame de DNA.
Jurisprudência
Em 2020, o ministro do STJ Rogerio Schietti concedeu liminar em habeas corpus para suspender a condenação de um jovem acusado de roubo, a qual teve como base apenas o reconhecimento pessoal, feito em desacordo com o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP). Segundo Schietti, a jurisprudência do STJ estabelece que o reconhecimento de pessoa sem a observância do devido procedimento legal “não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo”.
O precedente foi acompanhado pela Quinta Turma do STJ no HC 652.284/SC, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Segundo o entendimento do STJ, as garantias mínimas previstas no artigo 226 do CPP para a realização do reconhecimento de pessoas são de observância obrigatória, e não mera recomendação. A próxima reunião do grupo está marcada para ocorrer dia 25/10 e será transmitida pelo canal do CNJ no YouTube.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias