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O ônibus da cidadania
Notícia publicada por Assessoria de Imprensa em 08/11/2019 22:40
Justiça Itinerante completa 15 anos e mais de um milhão de atendimentos

Do pequeno carro de som - que percorreu, em 2004, as ruas de Tanguá anunciando o pioneiro atendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro naquele município em unidade móvel - aos ônibus que já rodaram mais de 900 mil quilômetros pelas estradas fluminenses. Nos seus 15 anos de existência, o Programa Justiça Itinerante venceu mais do que distâncias geográficas entre o Judiciário e a população do estado. Ele tirou da invisibilidade famílias inteiras, como a da dona de casa Lenir Conceição Silva; deu nova identidade aos que escolheram o próprio gênero; levou cidadania a quem sequer pode caminhar com as próprias pernas; e abriu portas para realização de sonhos dos que nunca desistem da própria vida. Foram mais de um milhão de atendimentos, mais de um milhão de sorrisos que marcaram para sempre magistrados, servidores e colaboradores do Programa. Conheça, a partir de hoje, histórias de personagens que mudaram suas realidades com o projeto.

 

                                                                      Integrantes da família Silva tiraram a certidão de nascimento na Justiça Itinerante

 

Morada dos Sonhos

A rua é de terra batida. A poeira, em dias ensolarados, toma conta de tudo. As casas são simples, muitas ainda com tijolo aparente. O nome da localidade é Morada dos Sonhos, mas a realidade de quem vive ali ainda está longe de ser a ideal. Nesse cenário, a apenas 60 quilômetros dos arranha-céus do centro financeiro do Rio, mora uma família de 12 pessoas que, há até pouco tempo, vivia num constante pesadelo.

Tudo começou quando, aos 11 anos, a dona de casa Lenir Conceição Silva, atualmente com 61 anos, deixou a pacata Mimoso do Sul, na virada dos anos 1960 para os anos 1970, no Espírito Santo, com parte da família. Vieram todos em busca de uma vida melhor na capital fluminense. Acabaram fincando raízes na área rural de Santa Cruz, na Zona Oeste da cidade, onde, alguns anos mais tarde, Lenir se casou e teve oito filhos – seis meninas e dois meninos.

A vida difícil e de muito trabalho da família foi ficando ainda mais complicada com o passar dos anos pela falta de um documento básico: a certidão de nascimento. Não só a dela, como também as dos filhos e até dos netos. Quando chegou ao Rio, Lenir trouxe na bagagem sua certidão, tirada ainda no Espírito Santo, mas numa enchente, ocorrida há mais de 30 anos, o documento foi perdido em uma enxurrada. O dela e o da família.

Os Silva se recompuseram da tragédia. Ficaram todos ali, fisicamente, mas completamente anônimos para a sociedade. Visíveis aos olhos de todos, mas invisíveis como cidadãos. Sem o documento e com a vida apertada, Lenir foi seguindo um destino que contrariava seus sonhos e parecia não ter fim. Na trajetória da humilde família não faltaram situações constrangedoras, tristes mesmo, pela falta do documento.

 

 “Eu chorei muito quando recebemos as certidões. É como se eu tivesse carregado eles por nove meses e ganhado de novo.”

Lenir Conceição Silva (à direita)

 

O pior dia

- Há muito tempo queríamos participar do sorteio de uma bicicleta. Meus filhos ficaram empolgados, era uma festa de Natal com a presença do Papai Noel. Só que ao chegar no local, precisava de documento e chegaram a falar que não era nem para eu estar lá, que estava ocupando o lugar de quem tinha documento. Era a esperança de conseguir algum brinquedo para eles. Acho que foi o pior dia da minha vida. Foi muito humilhante para mim - recorda a matriarca.

Os obstáculos se sucediam, como na hora de matricular os filhos na escola. E a exclusão, pela falta do documento, parecia não ter fim. Era como se a vida tivesse reservado aos Silva aquele destino opaco. Os mais velhos só conseguiram estudar graças a uma autorização do Conselho Tutelar. E o aprendizado tardio provocava reações de puro preconceito, como conta uma das filhas de Lenir, Ariane Conceição Silva, de 29 anos:

- No primeiro dia em que fui para a escola com alguns irmãos fiquei com vergonha porque as pessoas começaram a rir quando percebiam a diferença da nossa idade em relação a dos outros alunos. Tive dificuldade de aprender a escrever meu nome. Quando eu começava a fazer, vinha dor de cabeça, e aí eu já queria sair da sala. Acabei abandonando os estudos por causa da vergonha.

Conseguir atendimento médico em qualquer emergência era literalmente um parto. Que o diga Renata Aparecida da Conceição, de 24 anos, outra filha da capixaba:

- Foi um sufoco para dar entrada na maternidade. Só atenderam mesmo porque era caso de emergência, mas se eu estivesse sentindo só uma dorzinha eles teriam me mandado para casa. Já cheguei em trabalho de parto e não queriam me atender. Muitas pessoas que estavam no hospital eram atendidas rápido, embora eu tivesse chegado antes.

Também na hora de se tornar mãe, Ariane, irmã de Renata, já excluída do ambiente escolar, viveu momentos de desespero mesmo depois do parto realizado:

- No dia seguinte, o hospital não queria liberar minha filha para ir para casa comigo. Eles avisaram que eu iria sair, mas sem ela porque eu não tinha documento com foto para provar que ela era minha filha. De novo, os responsáveis do Conselho Tutelar ligaram para o hospital e fizeram um documento improvisado para me liberar com ela. Fiquei desesperada porque eu iria embora e ela ficaria.

Para Ana Cristina Marisol Conceição Silva, 30 anos, hoje mãe de dois dos três netos de Lenir, o cotidiano era de extrema crueldade pela falta de documentos.

- Para qualquer coisa a gente já pensava como chegar, o que fazer, o que falar. Nós não éramos bem vistos em lugar nenhum, não éramos notados por ninguém. Eu chegava no médico e ele perguntava o nome, solicitava documento - porque tinha que apresentar. Eles falavam “como que a gente vai fazer um cadastro se você não tem documento? A gente não sabe quem você é. Perante a sociedade você não existe”.

 

Peregrinação e descoberta

Muitas das tentativas de conseguir o documento acabaram em sofrimento. Deisiane Conceição Silva, de 27 anos, conta que a peregrinação em busca de uma saída parecia não ter fim:

- Ninguém atendia a gente direito. Chegaram a mandar o meu irmão ir para um lugar, depois para outro. A gente tentava e era só decepção em cima de decepção. Mandavam para cartórios e nada.

Tudo só teve um fim depois que Lenir descobriu, em 2013, que, em um ônibus adaptado, estacionado toda sexta-feira na Praça XI, ao lado do Sambódromo, no Centro do Rio, ela poderia finalmente tirar os documentos que tanto faziam falta à família.

- Juntamos dinheiro, pegamos o trem e chegamos. Foi a maior felicidade quando soubemos que poderíamos resolver tudo num lugar só. Muitas vezes, não tínhamos dinheiro de passagem. Eles falaram para arrumarmos o dinheiro da ida porque a passagem de volta eles garantiriam – lembra Lenir, acrescentando, em seguida:

- Eu chorei muito quando recebemos a certidão. É como se eu tivesse carregado eles (filhos) por nove meses e ganhado todos de novo.

 

Nova vida

A realidade agora mostra que o tratamento é completamente diferente onde antes a reação era de indiferença. Bernadete Bárbara Conceição Silva, de 28 anos, disse que o Justiça Itinerante - programa desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ)  com o apoio da equipe do Serviço de Promoção à Erradicação do Subregistro e a Busca de Certidões (SEPEC) -, mudou a vida da família, a partir de 2013:

- Eu, agora, tenho o registro e os documentos para fazer coisas que não iria conseguir sem eles. Mesmo desempregada, pretendo fazer um curso.

Renata não teve problemas para colocar o filho de 8 anos na escola. Ariane agradece porque hoje ninguém mais precisa enfrentar as situações vividas por ela e pelos irmãos. Deisiane faz questão de ressaltar que, pela segunda vez, vai poder participar de uma eleição por já ter título de eleitor. O orgulho de se sentir, finalmente, uma cidadã explica o gesto de Lenir de pendurar a bandeira do Brasil na fachada da casa.

- Eu aprendi a dar a volta por cima. Sempre trabalhei na roça, acordava cedo para capinar, raspava curral e plantava. Mas sempre conversava comigo mesmo e tinha fé de que um dia superaríamos tudo. Hoje eu tenho minha casa, que é o meu palacete. A família toda trabalha para garantir o nosso sustento. Sempre falo que cada um ganhando cinco reais e sendo honesto já ajuda no sustento. Tenho muito orgulho – diz a matriarca, que leva no coração a certeza de que ali, agora, a morada é verdadeiramente dos sonhos.

SV/FS

Fotos: Brunno Dantas/ TJRJ