Garantia futura do passado
É no segundo andar do Museu da Justiça que se faz mais do que história: se preserva a história. São mestres do restauro que, a partir de agora, vão deixar o manto do anonimato para ganhar essas páginas do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. E, quem sabe, ganhar um olhar de admiração ou talvez um bom dia mais entusiasmado de quem vai descobrir que o que eles fazem é uma espécie de magia. Com técnica e sensibilidade, eles fazem a restauração acontecer e não são meros coadjuvantes de quem escreveu as primeiras linhas.
Não há burburinho e nem barulhos na sala-laboratório, onde preciosíssimos documentos vão ganhar uma segunda chance. Ou melhor, vão viver para a eternidade nas mãos que já tocaram tantas folhas que ficarão para a posteridade. Recostada na parede, uma estranha máquina, que parece uma daquelas traquitanas do filme “De volta para o Futuro” fica quieta até ser acionada.
E foi ali, olhando para aquela peça esmaltada com botões sobressaltados, meio máquina de lavar que poderia estar na área da casa de qualquer avó, que se descobre e se aprende que papel toma banho.
Delicadeza e técnica recuperam documentos
Quem explica o processo e o “banho” do papel é Elizabeth de Freitas Neves, que, há 20 anos, se dedica ao ofício. Tudo começou na cidade mineira de Ouro Preto, em Minas Gerais, onde se formou em História. Mas o que estava por vir, na sua formação, foi um curso que fez de restauro de barroco mineiro em igrejas. Estava selado o amor pela preservação de obras de arte. E o caminho continuou com recuperação em papel, trabalhos para a Biblioteca Nacional, Casa da Moeda e outros lugares até integrar a equipe do Museu da Justiça - Centro Cultural do Poder Judiciário. Mineira, nada disso, Beth é carioca da gema. A cidade mineira pode ter sido o destino chamando a carioca para entrelaçar sua carreira e a arte do restauro.
E é ela que, orgulhosamente, folheia e conta com os olhos brilhando um calhamaço de papel que tem à sua frente. O processo criminal envolvendo a trágica morte do escritor Euclides da Cunha, o executor e a trama envolvendo toda a família num duelo provocado pelo amor do escritor, sua mulher e o amante em 15 de agosto de 1909. Foi totalmente recuperado e, hoje, está digitalizado. “Foi uma tragédia. Euclides foi tomar satisfação com o amante de sua mulher, Dilermando de Assis, levou uma arma, atirou, mas acabou sendo morto. E, depois de morto, Anna Emília Ribeiro, juntou-se e foi viver com seu amante”, conta Elizabeth de Freitas Neves.
O processo está em ótimas condições, graças ao trabalho incansável da equipe de um setor do Museu da Justiça que tem um nome grande, assim como são as suas realizações: Serviço de Acervo Textual e Audiovisual e de Pesquisas Históricas (Seata).
O fim da história, e que consta no enorme processo, é que Dilermando foi absolvido porque agiu em legítima defesa.
Não é raro que processos tão antigos, dos séculos XVIII e XIX, por exemplo, cheguem com pregos, colas e pedaços de papel sobre as páginas, muitas vezes ilegíveis. Aí é que entra a técnica. Mas quem resiste ao tomar como seu filho esse trabalho e não ler o conteúdo daquelas páginas que sofrem ataques de bactérias, fungos e a ação do tempo? Sabem tudo da história e do que passa pelas suas mãos, papéis e documentos.
Crimes que marcaram a história
Além de processos sobre crimes que chocaram o Estado do Rio de Janeiro, como o “crime do Sacopã”, como ficou conhecido o homicídio do bancário Afrânio Arsênio de Lemos, em 6 de abril, de 1952, na Ladeira do Sacopã, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, e da jovem Cláudia Lessin Rodrigues, em 1977, que teve o corpo jogado na Avenida Niemeyer, outros milhares de processos podem ser consultados no site do TJRJ, pelo link https://portaltj.tjrj.jus.br/web/museu/acervo
Inventários históricos
Cuidadosamente restaurados, existem inventários de figuras importantes, como os de Pedro II, pai da princesa Isabel, dona de fazendas, chácaras, propriedades em Petrópolis e do Palácio Guanabara, sede do governo estadual, e que foi motivo de disputa durante 125 anos pelos herdeiros.
O que se percebe é que todos do Serviço de Acervo Textual e Audiovisual e de Pesquisas Históricas do Museu da Justiça do TJRJ têm paixão e orgulho do que fazem. “Foi paixão à primeira vista”. É assim que a, hoje, restauradora Ana Lúcia Ângelo da Silva define seu amor pelo trabalho de restauração. Formada em Recursos Humanos, ela entrou no TJRJ em outro setor, mas, quando foi parar na equipe, começou a folhear o que de história continha naqueles processos e papéis que chegavam, não teve jeito: foi fazer cursos na Biblioteca Nacional e em outros lugares e, hoje, completa dez anos como restauradora de documentos.
Ela pode não se dar conta, porém esse caminho estava marcado em sua vida. Ana mora do tradicional bairro do Rio Comprido, repleto de história e descrito como bairro elegante, de moradias de altíssimo nível no século XVIII. “Eu fiquei hipnotizada quando entrei aqui. Ver o estado ruim que chegam esses processos, documentos e acompanhar e fazer parte dessa recuperação, é gratificante. Não tinha como não me apaixonar”, conta Ana.
Ele é como um maestro no comando dessa orquestra. Gilmar de Almeida Sá, historiador, formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é o chefe do Seata e comanda a equipe responsável por dar uma nova “chance” a documentos que fazem parte do Judiciário fluminense.
Também é um apaixonado pelo que faz. Ele cita que a compra de equipamentos para o departamento feita, neste ano, pela atual gestão foi extremamente importante para ajudar na eficiência do trabalho. “Eu me sinto um privilegiado em trabalhar na minha área. Amo o que faço e, às vezes, me emociono na transformação que damos a esses processos, que chegam degradados pela ação do tempo e que nos trazem, até de outras instituições, em péssimo estado de conservação. Garantimos o futuro desse passado”, diz emocionado.
E, dessa “orquestra”, ainda fazem parte Lucieni Batista (que também atua em pequenos reparos), Priscila Laurindo Gomes, Matheus da Silva, e André Luiz de Andrade, na equipe de apoio, como arquivistas e higienização.
PF/MB