Dezenas de pessoas trans e não-binárias recebem sentenças de requalificação civil em ação do Programa Justiça Itinerante em Niterói
“Agora eu vou ser feliz de verdade! Eu vou me encontrar e seguir meu sonho de fazer uma carreira militar e terminar minha faculdade sendo eu mesmo, sem precisar ter vergonha de ser identificado por outro nome na chamada!”, afirmou, orgulhoso, Nicolas Eduardo de Moura Ribeiro, de 24 anos, que não escondia a alegria e ansiedade, momentos antes de receber a esperada sentença de requalificação civil.
Após receber sua sentença de requalificação civil, Nicolas anunciou que vai em busca de seus sonhos, como a da carreira militar
Nicolas e outras 71 pessoas trans e não-binárias participaram, na manhã desta sexta-feira (20/10), do 9º Evento de Requalificação Civil voltado para o atendimento jurídico da população LGBTQIA+, promovido pelo Programa Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em parceria com o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis) da Defensoria Pública do Rio. O evento aconteceu no Fórum de Niterói e reuniu pessoas do município e, também, de São Gonçalo, Itaboraí e Maricá.
Nascido em uma família de militares e criado em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, Nicolas conta que foi educado seguindo padrões muito rígidos. E que se tornaram ainda mais tensos, quando se descobriu trans, em 2015, quando tinha 16 anos. Mas para sua surpresa, foi dos seus avós, ele militar e ela católica fervorosa, que recebeu o apoio incondicional para que ele conquistasse o sonho dele ser reconhecido como realmente era.
“O regime lá de casa sempre foi rígido e tenso. E as primeiras pessoas que desconfiaram e me perceberam, foram meu avô, um militar, e minha avó, uma ultracatólica. Isso aconteceu em 2015, quando eu tinha 16 anos, e já entendia o que eu era. E meu avô me apoiou. Desde o início me acompanhou em todas as consultas, meu primeiro corte de cabelo foi ele quem pagou. E o sonho da minha avó sempre foi ter uma neta. Mas ela chegou para mim e disse: ‘Você é meu maior sonho, sendo esse menino”. Foi meu avô quem escolheu meu nome, Nicolas, pois disse que lembrava o Natal”, contou Nicolas.
E o sonho de conquistar o direito de ter uma identificação oficial de como realmente se sente também se tornou realidade para Thales Mendes, de 33 anos, que participou do evento, sendo acompanhado pelo irmão, o advogado Rafael Mendes Pereira, que fez questão de comparecer para apoiar seu irmão.
Thales começou sua transição de gênero em 2019 e revelou que também recebeu o apoio da família em todo o processo para conquista do novo ideal.
Thales (D) levou o irmão, Rafael para assistir ao momento mais importante de sua vida e disse que o apoio da família foi fundamental para ser um homem trans
“A partir de agora, tenho certeza de que vai mudar tudo em minha vida, principalmente, a minha visibilidade, pois enfrentamos muitos problemas em relação a nossa identificação pelo nome. Passamos por muitas situações constrangedoras. Com a retificação geral do meu nome, as portas vão se abrir e vai acabar um pouco com o preconceito do dia a dia. O apoio da minha família, da minha mãe e do meu irmão, que veio aqui comigo hoje, foi fundamental. Ele me abraçou e me incentivou desde que eu me entendo como homem trans.”
O irmão, Rafael, não escondeu o orgulho pela conquista de Thales. “É um momento muito importante para nossa família, ver essa alegria e essa conquista do Thales, de, agora, ser reconhecido por quem ele é de verdade.”
Atualmente, morando na comunidade de Acari, no Rio de Janeiro, Malu dos Santos Cipriano, 19 anos, não teve a mesma sorte de receber o apoio da família. Filha de pais cristãos, sempre se sentiu reprimida por não poder demonstrar como se sentia e se identificava. Somente no ano passado ela resolveu virar a página da história.
“Minha história começou desde criança, quando fui muito reprimida pelos meus pais, que eram cristãos. Por isso, demorei muito tempo para demonstrar para a sociedade quem eu era realmente. Eu tomei coragem somente no ano passado. Agora vai mudar tudo. Porque quando a gente se reconhece como uma mulher e, por exemplo, quando chega no banco e lhe chamam por um nome morto é muito triste, pois a gente se sente como uma pessoa que não é. Então, a partir de agora, com a requalificação civil, isso vai trazer muita dignidade e felicidade para todos nós.”
Malu elogiou a iniciativa do TJRJ e disse que levava da ação muito mais do que um papel, levava "cidadania
Mulher e negra, Malu considera fundamental ações como a promovida pelo Justiça Itinerante em Niterói.
“Estou muito feliz de estar aqui hoje porque entendo que nossa comunidade, historicamente, sofre muita discriminação e, nos últimos tempos, temos passado por muitas tentativas de nos frear, através de discursos de ódio, disfarçados de religião e opinião. Por isso, iniciativas como essa de hoje são muito importantes. Isso daqui não é só um pedaço de papel. É garantia da nossa cidadania.”
A juíza Simone Ramalho, titular da 1ª Vara de Família de Niterói, à direita, destacou que a ação é fundamental para que todas as pessoas sejam incluídas e participantes na sociedade
Titular da 1ª Vara de Família de Niterói, a juíza Simone Ramalho Novaes foi uma das magistradas que participaram da ação, concedendo sentenças de requalificação civil.
“Considero essa ação de extrema importância, primeiro, por trazer a jurisdição de forma célere, através do Justiça Itinerante. E depois, em razão do público atendido, formado por pessoas que não se identificam com o gênero ou com o prenome e que acabam ficando fora do ciclo social, gerando inúmeros prejuízos de ordem psíquica e social. A requalificação faz com que essas pessoas se sintam participando da sociedade em que vivem da forma que se identificam. Esse tipo de ação faz com que eu me orgulhe, ainda mais, da profissão que escolhi e do tribunal que pertenço”.
A juíza Cássia Arueira Klausner, titular da 2ª Vara de Família de Niterói, também atuou na ação e destacou a importância da requalificação civil para a realização dos sonhos das pessoas que compareceram ao evento.
“É um encontro com a movimentação de muitas pessoas com o intuito de atender às necessidades de pessoas com maior celeridade. Eu vejo as pessoas saírem daqui recompensadas, satisfeitas, por terem realizado um desejo há muito tempo guardado. Vejo no rosto de cada pessoa, uma satisfação, um presente que estão levando para si”.
Coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis), o defensor público Helder Moreira, explicou que a ideia é expandir a ação para todo o interior do estado.
“Nossa intenção é levar essa iniciativa que deu certo na Capital para o interior do estado. Nesse ano já promovemos uma ação na Região dos Lagos, em Campos dos Goytacazes, e hoje estamos aqui para fazer a requalificação dessas pessoas de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Maricá. A importância desse evento é, sobretudo, porque a pessoa que veio hoje já sai com a sentença de requalificação na mão. Ela já pode fazer a averbação no cartório do registro de nascimento ou casamento.”
Também participaram, pelo Tribunal de Justiça do Rio, do 9º Evento de Requalificação Civil, as juízas Roberta Barrouin, Clarice da Matta e Fortes e o juiz André Brito.
Magistrados e servidores deram atendimento jurídico e informações a todo o público presente à ação
JM/FS