O reconhecimento pessoal errôneo é considerado uma das principais causas de prisões e condenações injustas no Brasil, muitas vezes impedindo que as pessoas que realmente praticaram o delito sejam responsabilizadas. Para incidir neste cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vai apresentar uma série de medidas, entre elas um anteprojeto de lei com diretrizes para modificação do Código de Processo Penal. Essas medidas foram definidas na segunda-feira (8/8), durante a reunião plenária de encerramento do grupo de trabalho criado para esta finalidade.
Coordenador do grupo de trabalho, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti Cruz explicou que também foi elaborada proposta de resolução voltada à magistratura, com diretrizes relativas ao tema. “Enquanto o texto proposto tramita no Legislativo, a resolução servirá para nós, do Judiciário, como um orientador importante em relação a esses casos”, pontuou. A norma elaborada pelo GT será apresentada ao Plenário na última sessão presidida pelo ministro Luiz Fux à frente do CNJ, no dia 6 de setembro.
Além da minuta de resolução e do anteprojeto de lei, os participantes da reunião também apresentaram uma cartilha com conteúdo orientador voltado para a população; um documento que elenca diagnóstico e boas práticas endereçados ao CNJ, além de proposta de um curso de capacitação voltado a juízes e juízas. Schietti afirmou que, aos poucos, as diretrizes que consideram que o reconhecimento formal deve seguir regras legais já começam a ser atendidas pela Justiça brasileira. Em São Paulo, segundo o magistrado, metade das câmaras criminais já adota essas orientações. “Isso é muito importante pois se trata do maior tribunal das Américas, responsável por metade dos processos que chegam ao STJ”.
A respeito da importância do grupo de trabalho, o conselheiro Mauro Martins destacou: “estou certo de que este GT deixará importantíssimo legado para todo o sistema de justiça criminal e seus resultados auxiliarão na qualificação dos procedimentos e decisões, evitando o aprisionamento e condenação de muitas pessoas inocentes. Esse é o objetivo maior do CNJ: promover as melhores práticas lastreadas em sólidas evidências científicas de modo a evitar que qualquer brasileiro inocente sofra as agruras de ser preso ou condenado em um processo criminal por ter sido reconhecido equivocadamente”.
Prisões injustas
A instituição de regras baseadas em métodos da psicologia do testemunho e de boas práticas podem deixar o reconhecimento pessoal menos sujeito a falhas. Levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro identificou que em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado a pessoa ficou presa, em média, por nove meses. O grupo de trabalho do CNJ contabiliza que o número de anos de aprisionamento cautelar pode ser ainda maior. Esse foi o caso do artista plástico mineiro Eugênio Fiúza, erroneamente reconhecido na rua por uma vítima. Foram 17 anos até que ele conseguisse a revisão do caso e sua liberdade.
Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, o juiz auxiliar da Presidência Luis Lanfredi ressaltou o caráter amplo e plural do grupo, que contou com a participação de magistrados, promotores de justiça, defensores públicos, delegados de polícia, além de juristas e representantes do terceiro setor, destacando-se também pelo protagonismo de mulheres e negros: “Essa pluralidade de perspectivas e vivências está refletida nas medidas propostas pelo GT, que contribuem, a um só tempo, para fortalecer a cultura institucional de respeito às garantias e liberdades dos cidadãos e para a ampliar a legitimidade do sistema de justiça criminal perante a sociedade, por meio da elevação do padrão de confiabilidade da prova de reconhecimento”.
A professora Janaina Matida, uma das 43 participantes do GT, enfatizou a necessidade de o reconhecimento de pessoas sempre contar com uma pluralidade de pessoas (o suspeito com outros não-suspeitos), todos semelhantes à descrição oferecida pela vítima. Essa medida é orientada pela psicologia do testemunho – área do conhecimento em que se busca garantir qualidade nos relatos prestados por elas. Além disso, é importante que a investigação busque avançar e o reconhecimento não seja a única prova. Outro ponto ressaltado diz respeito ao tempo para a realização do reconhecimento pessoal: ele deve ser feito na fase anterior ao processo penal, para evitar a degradação da memória.
Racismo estrutural
Nos Estados Unidos, os casos de prisões injustas por reconhecimentos pessoais ou fotográficos equivocados são responsáveis por cerca de 70% dos casos de revisão das condenações, após exames de DNA. Os motivos de um reconhecimento pessoal errado podem estar em várias causas: estado de nervosismo da vítima no momento do crime; condições de iluminação do local onde o crime foi praticado, tempo de contato entre a vítima e o autor do delito durante a ação criminosa, dentre outros fatores que dificultam a captação exata e memorização da fisionomia do ofensor.
Há também o efeito racial cruzado, pois as pessoas, de modo geral, encontram maior dificuldade para realizarem corretamente o reconhecimento de pessoas que pertencem a grupos raciais distintos por estarem menos familiarizadas com o fenótipo característico desses grupos. Assim, por exemplo, uma pessoa branca está mais suscetível a se equivocar ao realizar o reconhecimento de uma pessoa negra, que de alguém do seu próprio grupo racial. Outros fatores que podem levar a um reconhecimento equivocado se relacionam com a conduta de agentes do sistema de justiça criminal, como a exibição isolada de uma única pessoa para fins de reconhecimento (show up) ou a repetição do ato de reconhecimento, que podem induzir a vítima a um reconhecimento positivo, porém equivocado.
A Defensoria Pública do RJ, em levantamento recente, concluiu que em 83% dos casos as pessoas prejudicadas por reconhecimentos errôneos eram negras. “Em um país que não consegue dissociar a criminalização da repressão racial, a luta contra o erro de reconhecimento é, fundamentalmente, parte do tardio esforço das autoridades públicas para diminuição do racismo que se expressa e se estrutura por meio da seletividade penal, principalmente contra homens negros”, afirmaram os relatores gerais Maurício Dieter e Thaís Pinhata.
O advogado e professor Cleifson Dias explicou que o curso de capacitação proposto abordará questões como o racismo estrutural e detalhará sobre a psicologia do testemunho. O conteúdo do curso ainda está sendo finalizado , mas deve conter seis módulos, entre eles, eficiência do reconhecimento, memória humana; racismo estrutural no contexto brasileiro e no sistema criminal.
Para Rogerio Schietti, o trabalho realizado pelo grupo permitirá uma sensibilização em relação ao trabalho dos juízes brasileiros. “Magistrados e magistradas são pessoas que detêm o imenso poder de traçar o destino de pessoas. E todo dia chegam ao STJ habeas corpus relativos a situações absurdas de injustiças cometidas pelo Judiciário. Casos que antes de chegar ao juiz, passaram por policiais militares, policiais civis, que não perceberam os erros em suas atuações. O que prova que precisamos estar mais atentos a nossas funções”.