Com foco na atuação da magistratura e na necessidade de que juízes e juízas tenham uma leitura sistêmica dos desafios penais da atualidade, foi iniciada, nesta sexta-feira (13/8), a especialização “Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional”, uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). A aula inaugural foi proferida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e coordenador científico do curso Rogério Schietti.
Para o ministro, o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional nas prisões brasileiras pelo Supremo Tribunal Federal deve ir além da retórica, produzindo efeitos concretos no sistema de Justiça. “O juiz não pode deixar de levar em conta a gravidade do sistema prisional brasileiro, que está em persistente e duradoura crise e que é o grande opróbrio do sistema de justiça criminal. Ao cabo do déficit humano e material, cabe ao juiz, com responsabilidade, atuar para minimizar o efeito das agruras do cárcere.”
Segundo Schietti, a magistratura contemporânea deve buscar o respeito à Constituição, à democracia e às instituições com uma leitura holística, plural e intersetorial das leis e da realidade. Citando a importância da conduta judicial e da garantia de legitimidade do direito penal, afirmou que magistrados e magistradas devem ser se manter fiéis a obrigações morais e à supremacia das normas constitucionais, independentemente dos efeitos na opinião pública, além de se atentarem à separação de papeis de cada agente processual. “Infelizmente, no Brasil, ainda se confundem os papeis que devem ser separados – o de investigar, o de acusar, o de produzir prova e o de julgar. Eles não devem se sobrepor, em nome de um processo moderno.”
O ministro do STJ ainda defendeu a presunção de inocência como princípio vetor que abriga diversas outras garantias, e a importância de que o magistrado não apenas conheça, mas que se familiarize com a diversidade da sociedade, compreendendo as razões de fundo que motivam contextos e atitudes. “A relação do juiz com o réu é com alguém de carne e osso, e não um personagem. O réu deve ser tratado como sujeito processual com voz ativa, um sujeito de direito e não objeto de atuação de inquisição, que não mais existe.”
Ao defender a empatia judicial – que não implica em concordar, mas em conhecer a realidade do outro – o ministro destacou a importância de que a magistratura se mantenha alerta no desempenho de sua função. “Ser juiz é lidar com uma dualidade de sentimentos. Lidar com o cidadão, com o homem que talvez expresse sentimentos e paixões, e em outro lado o juiz investido de uma toga, de poderes e expectativas que lhe impõem um comportamento compatível com o que se espera dessa figura. Essa dualidade muitas vezes nos traz alguma dificuldade de nos desprendermos desses subjetivismos, preconceitos, ideologias, e nos torna muitas vezes incapazes de compreender as motivações.”
Também participaram da aula inaugural o coordenador-geral do programa de pós-graduação da Enfam, o ministro do STJ Herman Benjamin; a vice coordenadora acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Direito da Enfam, desembargadora federal Taís Schilling (TRF4); o juiz coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, Luís Lanfredi; a juíza auxiliar da presidência do STJ Sandra Silvestre, em nome do presidente da corte, Humberto Martins; e dezenas de convidados representando tribunais estaduais e federais, além dos alunos do curso.
Qualificação
A especialização inédita voltada a magistradas e magistrados é parte de produtos de conhecimento lançados pelo CNJ em 2020, com uma leitura atualizada sobre os desafios na porta de entrada do sistema prisional. Tanto o curso quanto os produtos integram as atividades do programa Fazendo Justiça, parceria iniciada em 2019 entre o CNJ e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para avanços no campo penal. Na área das audiências de custódia, o programa tem o apoio do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
No dia 3 de setembro, haverá a conferência magna do curso, com a participação do jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni e do professor Sérgio Salomão Shecaira, da Universidade de São Paulo, com o tema “Normas e Experiências Internacionais na Redução do Encarceramento”. A aula magna também será transmitido ao vivo no canal do CNJ no YouTube.
O curso será realizado entre agosto de 2021 e maio de 2022 e envolve 40 magistrados e magistradas de todo o país e que tem atuação na área penal, além de estudantes convidados. Entre os temas abordados, estão uma abordagem crítica sobre a efetividade do sistema penal no Brasil e no mundo, as audiências de custódia, as alternativas ao encarceramento e o controle da superlotação carcerária pelo Judiciário.
Além de trabalhar o conteúdo da coleção Fortalecimento da Audiência de Custódia, que contém seis manuais com novos parâmetros de atuação da magistratura no campo, o curso fomentará participação ativa de juízes e juízas na gestão de vagas penais com foco no controle da superlotação e em torno da governança interinstitucional. Por isso, serão abordados temas como gestão pública, orçamento e custos da política penal.
Débora Zampie