Apesar de avanços legislativos assegurarem direitos mínimos às mães em privação de liberdade e a seus filhos, pesquisa elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) revela violações aos direitos dessas pessoas. Os dados do levantamento que investigou a realidade da gestação, lactação, maternidade e da primeira infância nos contextos do sistema prisional e do sistema socioeducativo foram apresentados, nessa quinta-feira (28/4), no Seminário Nacional do Pacto pela Primeira Infância.
O relatório contém cerca de 150 análises quantitativas, entre gráficos e tabelas. Além do cruzamento de dados, de análise de normas e decisões judiciais, a pesquisa também entrevistou 200 pessoas de 18 comarcas em cidades de pequeno, médio e grande porte, entre defensores públicos, membros do Judiciário e do Executivo estadual e municipal. Segundo a pesquisadora do Pnud Luciana Garcia, por conta da pandemia da Covid-19, não foi possível fazer as entrevistas com as mulheres presas nem as adolescentes internadas.
De acordo com a pesquisa, em 2020, 31,6% de gestantes ouvidas em audiências de custódia tiveram prisão preventiva decretada – em tendência de redução em relação aos anos anteriores. O número de mulheres não grávidas foi levemente superior (42,4%).Em 2016, o percentual de mulheres grávidas ou não grávidas sentenciadas com prisão preventiva após audiência de custódia chegava a quase 50%.
O estudo revela ainda que o número de mulheres presas gestantes ou de adolescentes em regime de internação no sistema socioeducativo grávidas ou com filhos de até seis anos de idade está diminuindo nos últimos anos. No entanto, ainda há violações de direitos que podem ser evitadas. A pesquisadora do Pnud Paola Stuker cita como exemplo a que não está observado integralmente o habeas corpus coletivo julgado pelo STF em 2018, que orientou que seja convertida a prisão preventiva de mulheres gestantes ou mães de crianças até 12 anos em prisão domiciliar.
“As normas legislativas não têm sido aplicadas de maneira integral pelo Judiciário”, afirma Paola Stuker. Considerada a fase mais decisiva do desenvolvimento humano, especialistas recomendam que as crianças na primeira infância vivam em condições saudáveis, em ambientes seguros e acolhedores. “Certamente uma realidade muito diferente da que vemos nas penitenciárias e nas unidades do sistema socioeducativo.”
“Precisamos que a criança esteja com a mãe, pois já sabemos todas as consequências que essa privação pode causar”, destaca a psicóloga Manuela Amorim, coordenadora de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos do Departamento Nacional Penitenciário (Depen).
O levantamento reuniu diversas informações de mais de 10 bases de dados, tanto do CNJ como de outras entidades, como o Instituto Alana. O cruzamento das informações de sistemas do Conselho com o Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal é considerado uma inovação importante e um dos maiores ganhos desse trabalho. Ele permitiu obter informações mais detalhadas sobre as mulheres presas, como renda, cor e escolaridade, entre outras.
A pesquisa qualitativa destacou questões estruturais que impedem o levantamento de dados estatísticos do perfil dessas mulheres. Conforme identificado pelas pesquisadoras Luciana Garcia e Thais Duarte, “o racismo que fundamenta o sistema penal brasileiro estende-se ao sistema de proteção da primeira infância e orienta tanto os posicionamentos sobre o exercícios da maternidade pela mulher considerada criminosa como a fragilidade do desenho de políticas públicas que sequer conhecem o perfil das mulheres que são mães e de seus filhos”.
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Desafios
Com base em um recorte que analisou a chance de mulheres grávidas com e sem antecedentes criminais serem encarceradas, a pesquisa revelou que estar grávida no momento da audiência de custódia, mas não ter antecedentes criminais conferiu redução de 62% na chance de a decisão do juiz ser pela prisão preventiva. Já quando a gestante não é mais ré primária, a diminuição da chance de ser mantida em cárcere é substancialmente menor: 29%.
“À despeito dos avanços normativos, ainda há desafios a serem superados também na esfera do Poder Judiciário”, afirmou a defensora pública Liana Lisboa Correia, que atua no Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo do CNJ. Ela destacou a publicação da Resolução CNJ n. 369/2021, que estabeleceu procedimentos e diretrizes para substituição da privação da liberdade de gestantes mães, pais e responsáveis por crianças com deficiência, como uma das normas fundamentais na concretização do acesso à Justiça de mulheres e jovens privadas de liberdade.
A pesquisadora Paola Stuker aponta a difícil contradição a ser superada. “O ambiente carcerário é extremamente hostil para essas crianças, mas, ao mesmo tempo, se a mãe está presa e a criança não está com a mãe, ela está protegida do ambiente, mas tem o direito violado de estar com junto de sua mãe.”
Das 32 unidades prisionais pesquisadas, só existe possibilidade de se fazer exame pré-natal em duas. Em 23 delas, as mulheres podem ser encaminhadas a locais externos de exames e em sete não há nenhuma possibilidade. “A lógica prisional foi construída por homens e para homens”, afirma a também pesquisadora Liana Lisboa.
A juíza Roberta Barrouin, da Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), cita o programa Amparando os Filhos, do TJRJ, como exemplo de política pública voltada para mulheres encarceradas, grávidas e mães de crianças na primeira infância. O projeto ampara e apoia filhos e mães, a fim de que não percam seus vínculos e foi inspirado no projeto de mesmo nome do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO).
”O projeto nasceu da necessidade de cumprirmos as normas espalhadas por todo o ordenamento jurídico, de proteção às crianças e jovens. É dever da família, mas não só da família, da sociedade e do Estado assegurar a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes”, defende.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias